Por que a Quaresma de São Miguel está sendo tão criticada?
Por que a Quaresma de São Miguel está sendo tão criticada?
Raul Zancan Stefanichan
Não é a primeira vez que o povo fica sem reação. Desta vez os fiéis estão quebrando a cabeça tentando encontrar as insondáveis razões por trás da postura de uma boa parte do clero que, sabe Deus porquê, tem olhado para a Quaresma de São Miguel com grande suspeita e até mesmo repulsa.
Verdade seja dita, não é totalmente novo que alguém considere São Miguel uma ameaça: nunca foi do feitio do Arcanjo fugir de uma briga; não é novidade também que ele tenha arrumado bem mais que um ou dois inimigos no caminho, ossos do ofício. Mas pondo à parte o antigo ódio espiritual – sem dúvidas sempre presente e marcando ponto também em nossa questão –, fica difícil imaginar uma outra razão para problematizar algo tão natural, tão normal, tão simples quanto a ação devocional ao anjo.
De fato, a implicância em relação a uma oração – assim como vários outros fenômenos que vemos despontando com cada vez mais frequência em nossa vivência eclesial –, não parece corresponder exatamente ao que seria uma reação espontânea da cabeça, perdoem-me, de gente normal. É uma oração, meu Deus! Qual seria o problema afinal? Mas aqui é Brasil. Estamos nesse admirável ambiente no qual os fatos mais disparatados não cansam de surgir, exibindo uma bela cara-de-pau ao lado desse quê de irracionalidade opaca que nos desafia, pela milésima vez, a desfiar cada uma das linhas que compõe a malha do mais novo absurdo da moda.
A pouco tempo atrás era a bendita comunhão na boca. Prática simples, prescrita, de direito. Sem nenhum segredo. Nada difícil de entender. O que poderia dar errado? Ah… santa ingenuidade. Aqui é Brasil. É claro que vai surgir um dito-cujo para arrumar problema. Dito e feito, eis que surge o iluminado do bispo resolver – sem necessidade nenhuma – de inventar de achar defeito, problematizar e recusar a comunhão na mão. Por quê, meu Deus? Aparentemente “porque sim”, e acabou.
Perdoem-me o tom meio indignado, mas acredito que vocês entendem. Pessoalmente, não estou fazendo a Quaresma de São Miguel. Também nunca acordei às três da madrugada para rezar o Rosário. Mas quando descobri o tamanho desse fenômeno não pude deixar de ficar feliz; é um evidente sinal de revitalização espiritual. É impossível não se alegrar: nossa Igreja parece, pouco a pouco, ganhar ânimo vendo muitos de seus filhos voltarem a respirar a fé, voltarem a se encontrar.
É bem verdade que não é de todo descabida a acusação de “modismo”. Há, de fato, um crescente clubismo sempre meio reticente que têm insistido em adotar cada “antiga” novidade como quem escolhe o novo tênis da moda, obviamente milimetricamente combinado com a patota da vez. Que los hay, los hay. E, nesse sentido, é sempre bom lembrar o velho conselho evangélico que nos manda se trancar no quarto, ao invés de sair exibindo orgulhosamente nossa cara-de-pau, em busca do novo “aplauso espiritual” do momento.
Agora – calma lá! – será que talvez não haja algum exagero, feito em nome do sempre atento sindicato de fiscais do farisaísmo alheio, em criticar com tanta veemência a simples prática da oração do terço? Pelos frutos os conhecereis, certo? Pois então como não ver que esse fenômeno tão grandioso se define não por meia dúzia de mesquinharias de adolescentes, mas sim por essas milhares de pessoas que realmente estão se reencontrando com a fé, se reaproximando de Deus e dando, talvez, seus primeiros passos mais firmes na vida espiritual? Como não ver que a promoção da oração é também, afinal, espírito missionário – e, nesse caso, certamente muito mais efetivo do que o falatório histérico e alucinado sobre missão promovido pela legião de nossos missiólogos de gabinete?
Não quer rezar, não reza. Agora, vir aqui de graça perturbar… por quê?
Pois então, vamos lá. Tenho insistido já faz um tempo e gostaria de repetir novamente aqui algo que considero crucial: a chave para compreender boa parte – senão todos – esses acontecimentos disparatados na Igreja de hoje é reconhecer, antes de mais nada, que estamos em um período de transição; um momento de profunda transformação eclesial. Profunda mesmo! Difícil exagerar a importância dessa ocasião.
Vínhamos de um período que poderíamos chamar de sócio-libertário. A grosso modo, suas raízes estão na década de 40 (com a influência do pensamento social belga e francês), sua formulação ocorrerá na década de 70 (período de estruturação do movimento libertário) e o início de sua crise na década de 90 (com o deslocamento do eixo narrativo para as pautas identitárias e o início da crise nas bases).
Esse declínio é um fenômeno já bem documentado inclusive pelos próprios intelectuais libertários: vide João Batista Libânio já desde a década de 90 e, mais recentemente, os esforços de Agenor Brighenti. O fato é que o pensamento libertário se encontra basicamente preso no emaranhado de duas grandes crises: uma crise interna (incapacidade de reação intelectual e renovação dos quadros) e uma crise externa (o crescente descrédito por parte do povo de Deus).
Esse recuo do movimento acabou produzindo, por sua vez, uma espécie de vácuo intelectual, um vácuo que permitiu o gradual surgimento de um novo espaço que foi sendo ocupado por novas iniciativas. Se somarmos a esse recuo a profunda modificação cultural que o país sofreu recentemente – com o florescimento de novas ideias, novas perspectivas, novas formas de pensar e repensar as coisas –, não nos parece difícil antever o resultado: com o fim da hegemonia libertária, estamos na iminência de um nova fase na vida da Igreja do Brasil.
De forma mais ou menos clara todos nós já sentimos isso. As coisas estão diferentes do que eram há quinze anos atrás. A quantidade de novas iniciativas, a crescente autoconsciência dos leigos, as novas produções culturais, a preocupação pelo resgate de nossa memória, tudo isso constitui, em nossa história, um cenário eclesial – repito: –completamente novo.
É aqui que, creio eu, chegamos ao núcleo de nossa questão: tudo parece girar em torno da relação entre os hábitos próprios de um período anterior e o surgimento de uma nova fase eclesial, girando entorno desse movimento de reavivamento espiritual; é a velha dialética entre o antigo e o novo. Para mim toda a polêmica em relação a Quaresma de São Miguel nada mais é do que um reflexo dessa mesma questão.
Notem: iniciativas como a retomada da prática da comunhão na boca, a Quaresma de São Miguel, as novas devoções, não surgem desde dentro da instituição. Elas são – via de regra – manifestações espontâneas dos leigos. Nesse sentido, todas elas podem ser entendidas como símbolos do novo, são signos que expressam o anseio de reavivamento. Para quem as pratica, não há problema algum: o fiel está simplesmente buscando se reaproximar da própria fé. No entanto – e essa é toda a questão –, nem todo mundo vê assim.
É que, ao contrário do que seria normal de acontecer, esse reavivamento espiritual dos últimos anos tem sido tratado com extrema suspeita. Não é preciso muito para constatar que, em geral, a interpretação que se faz – mesmo em relação as coisas mais simples e normais (São Miguel que o diga!) –, é sempre baseada nesse mesmo olhar crítico, ensimesmado, absolutamente fechado a qualquer possibilidade de diálogo. Há uma decisão nítida de não tentar compreender o novo; uma decisão de rejeitá-lo de antemão, sem muito esforço de reflexão mesmo.
Quanto a isso não podemos esquecer nunca que, mesmo em crise, o movimento libertário ocupa posições chave dentro da instituição. No entanto, apenas essa oposição não me parece suficiente para explicar a declinação total do problema. Sinto que para compreender as raízes do mal-entendido deveríamos recuar até condições ainda mais básicas, quiçá psicológicas: parece-me constante nisso tudo uma atitude que poderíamos denominar de postura de manutenção.
O fato é que períodos de transformação, como o nosso, geram instabilidade; e instabilidade gera insegurança. Quando a incerteza é muito forte, é natural que surja no espírito a inclinação para manter-se na zona de segurança, para tentar manter as coisas como estão. Pois bem, é justamente isso que sinto em alguns setores da Igreja hoje: na incapacidade de compreender os novos movimentos, o que ocorre é um fechamento defensivo em bolhas de segurança. É por isso que um setor significativo do clero vê esses símbolos como ameaças: eles são sinais desse novo desconhecido.
Poderíamos definir a postura de manutenção como uma atitude mental que sustenta uma ampla e global rejeição a tudo que é novo, fora da área de conforto. Desse contexto emergem duas tentações que gostaria de ressaltar aqui, pois são, como veremos, muito presentes em nossa situação: uma é o que poderíamos chamar de (a) tentação do fechamento; e a outra (b) tentação do controle.
(a) Tentação do fechamento.
A atitude predominante aqui é a de suspeita em relação a tudo que é novo. A resposta natural acaba sendo a produção de rótulos. O desconhecido é tachado e reduzido a algum estereótipo de cunho negativo. Até certo ponto, isso é natural porque o próprio fechamento impede que a inteligência busque os conceitos mais adequados para compreender como de fato as coisas são. É suficiente, para tanto, um certo leque de estereótipos que criem a confortável ilusão de estar compreendendo alguma coisa.
Essa é a origem de rótulos como “tradicionalismo”, “liturgismo”, “conservadorismo”… a rigor, eles serão aplicados a qualquer coisa nova que destoe do que se compreenda como “seguro”. Assim, o “tradicionalismo” caberia para abranger as realidades mais opostas: desde um sedevacantista até um aluno do Padre Paulo Ricardo. E, sim, provavelmente será usado como “insulto” para você que reza a Quaresma de São Miguel.
Essa é a origem mais profunda também da incapacidade que eles têm de realizar uma análise de conjuntura que preste. Os próprios rótulos impedem a aquisição dos instrumentos necessários para compreender a situação. À medida em que as próprias análises criam novos rótulos, temos a formação de um perfeito círculo vicioso, totalmente pronto para não entender nada ao mesmo tempo em que se crê capacitado para julgar tudo.
(b) Tentação do controle.
Como boa parte das novas manifestações vem dos leigos, há dificuldade de estabelecer o controle do processo. Se o problema fosse interno, seria possível utilizar os meios institucionais como forma de retaliação. No entanto, a iniciativa leiga possui certa independência em relação a burocracia hierárquica.
Dessa forma, uma tentativa de assumir o controle seria a crítica pública. As críticas, no entanto, têm produzido o efeito inverso: como são extremamente deslocadas da realidade, cada vez mais elas vêm sendo recebidas com espanto e indignação. É difícil para o povo compreender, afinal, porque uma prática devocional deveria ser tratada com tanto desprezo e hostilidade. Com isso, o clero acaba perdendo de uma vez sua credibilidade e as tentativas de recuperar o controle se tornam cada vez mais ineficazes. Outro círculo vicioso.
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Infelizmente o resultado disso tudo é esse episódio tragicômico onde temos, de um lado, um grupo mais antigo que insiste em se retorcer em ranço e desconfiança, se reunindo, de quando em quando, para unir forças contra o mais novo moinho de vento da vez; e, do outro, uma geração mais nova, olhando, meio abismada, sem entender o porquê, ou o que haveria de tão maligno e errado em rezar o bendito do Rosário às três.
Mais do que demarcar um conflito de mentalidades, isso nos revela a falência de boa parte dos antigos instrumentos hermenêuticos. Não é só uma divergência pontual, nem mesmo um episódio excêntrico; esse é mais um dos tantos desencontros que assinalam uma mudança de época. São sinais de que já se põe em curso, pouco a pouco, a inauguração de um novo período histórico.
Pois bem, que a responsabilidade disto redobre nosso cuidado e nossa comunhão com a Santa Igreja. É impossível dizer exatamente o que virá. O que é possível, e absolutamente imprescindível, é mantermo-nos unidos em oração; e sobretudo – por que não? – nos voltando cada vez mais a ele: ao príncipe da milícia celeste.
Sem mais: que São Miguel Arcanjo nos defenda no combate.
Amém.